sábado, 3 de dezembro de 2011


Por Vanir Junior

No Império Bizantino, o elemento articulador de todos os outros, como, por exemplo, a economia, a política e a cultura, foi a religião. Ela fornecia os fundamentos do poder imperial, determinava o cotidiano dos indivíduos e absorvia parte dos recursos econômicos. Em Bizâncio, Império e Igreja caminhavam juntos. Eram vistos de forma indissociável. É possível perceber tal aspecto até mesmo pelos princípios teológicos do império, uma vez que o mesmo é considerado “uma antecipação do Reino dos Céus” (FRANCO JR., Hilário, p. 13). E muitas vezes, a explicação para algum fracasso político estava no fato de haver uma grande prática de pecados. Sendo assim, o fracasso era uma punição divina.
É importante ressaltar que houve uma série de peculiaridades na religiosidade bizantina que a diferenciava da ocidental. Em primeiro lugar, podemos citar que a estrutura eclesiástica no oriente era controlada pelo imperador. O patriarca era subordinado ao soberano. Isso se dá em grande parte pelo fato da teocracia bizantina ter herdado o cesaropapismo (pela Lógica Eusebiana), teologia política elaborada por Eusébio de Cesaréia, que foi influenciado por Orígenes, Platão e Zaratustra. Ou seja, a união de poder temporal e espiritual na figura do imperador. A teocracia de Bizâncio consistia em uma espécie de governo terrestre pela vontade de Cristo. E, assim como no céu, existia uma hierarquia terrena. Em tal hierarquia, o imperador era o ponto mais alto porque, segundo Eusébio de Cesaréia, seu poder emanava diretamente da santíssima trindade (subordinacionismo). Em posição secundária vinham os patriarcas.
Havia em Bizâncio a tentativa de mimetizar a hierarquia celeste. O líder religioso, no caso o patriarca, é submetido às ordenações estatais, porque o governante, assim como os apóstolos, é considerado um enviado de Deus, um súdito de Deus, um vice-rei de Deus, enquanto os habitantes comuns são súditos do Estado. E como no céu não há igualdade de posições, na terra deveria ser assim também. Com isso, o Imperador poderia legislar em matéria eclesiástica, o que quer dizer que ele tinha liberdade para interferir nos assuntos da Igreja e isso era considerado legítimo. Steven Runciman nos diz que em Bizâncio, o Imperador não perdeu seu aspecto sacerdotal. Ele era ungido pelo próprio Cristo, sendo um Basileus (um servo de Cristo que recebia a missão de preservar os povos para o seu Senhor).
Já na teocracia ocidental temos um maior fortalecimento do poder eclesiástico, uma vez que, devido à crise romana que provocou enfraquecimento das autoridades imperiais, a Igreja assumiu todo o protagonismo político. Maria Sonsoles Guerras enfatiza as vezes que Igreja, sob a liderança de Leão I, lutou contra Hunos e Vândalos, por exemplo, enquanto o Imperador nem mais em Roma residia. Muitos a essa altura residiam em Ravena ou Milão. Nesse contexto, temos a Teologia Política de Gelásio I, que propõe uma intermediação eclesiástica e assim, a lógica cesaropapista ocidental se difere da oriental. Gelásio afirma que o poder divino antes de passar pelo Imperador, passa pelo Papa. Teremos a concretização dessa teoria na formação dos Reinos Bárbaros, onde o Estado se forma como uma instituição cristã, tendo o dever de sustentar, proteger e divulgar a fé.
Segundo afirmação de Hilário Franco Junior, ao contrário do Ocidente, no Oriente existia uma força política que submetia os eclesiásticos. Essa força política estava concentrada com os imperadores, que eram considerados como intérpretes infalíveis das coisas divinas. Os patriarcas eram considerados a própria imagem de Cristo. Isso quer dizer que mesmo subordinados, possuíam também grande importância. Por isso, a combinação de poderes entre patriarca e imperador era vista como vital para estabilidade imperial. E mesmo submetidos, os patriarcas tinham certa liberdade política. Muitos também participaram de decisões políticas. Discutiam e até mesmo criticavam o governo. Algumas vezes, chegaram a excomungar imperadores. Subordinados aos patriarcas estavam vários bispos, arcebispos e párocos. Vale destacar o papel do monge em Bizâncio. Muitos bispos, a partir do século XII, foram recrutados entre os monges, o que elevou o nível moral da igreja, pois eram vistos como exemplos de pureza, mas baixou o nível intelectual.
Em segundo lugar, podemos citar as formas que os bizantinos retratavam a imagem de Cristo. Assim como os imperadores bizantinos eram visto como fortes líderes, o Jesus Cristo bizantino também era retratado assim. Era a imagem do Cristo pantocrátor (todo poderoso), legislador e governante dos céus, que havia escolhido seu representante na terra, o imperador. No ocidente, entretanto, Cristo era retratado de forma frágil.
Em terceiro lugar, segundo Renata Rozental Sancovsky, Bizâncio não alcançou um consenso a respeito da santíssima trindade estabelecida por Nicéia. Isso ocorreu porque a religiosidade popular bizantina era muito forte, podendo expor muitas vezes suas visões de discordância, coisa que não era comum no ocidente. Tal variedade de pensamentos religiosos resultará em várias heresias, como o Nestorianismo e Monofisismo, que serão abordadas mais a frente. Vale ressaltar a colocação de Sancovsky:
“Essa ausência de unidade teológica bizantina pode ser comprovada pela variedade de doutrinas denunciadas como heréticas e desviantes aos dogmas firmados durante os concílios de Nicéia I (325), de Calcedônia (451) e de Nicéia II (787).” (SANCOVSKY, aula 12, o Império Bizantino: a toecracia e os fundamentos religiosos do poder imperial. CEDERJ, pág.55).
A Igreja de Bizâncio esteve sempre muito próxima à religiosidade popular. Não havia uma preocupação em estabelecer uma teologia a ser seguida por todos (Hilário Franco Jr.). Havia espaço para que cada indivíduo escolhesse seu caminho para a salvação. Vale ressaltar que, segundo Runciman, a Igreja no Oriente significava o corpo total de fiéis, enquanto no Ocidente significava a hierarquia eclesiástica. A presença divina estava entre os homens e havia um significativo culto às relíquias e os milagres que elas poderiam efetuar. Entre tais relíquias podemos citar pedaços de corpos santos, objetos que tinham contato com eles. Tinham também cueiros, sandálias e cruz de Cristo. Esta última foi roubada na invasão persa e a guerra para os Bizantinos ganhou caráter santo. Foi recuperada depois de 14 anos. Elas se encontravam guardadas nos mosteiros. Muitas dessas relíquias foram levadas no Saque efetuado por Cruzados em 1204.

Heresias Bizantinas

Mesmo com o estabelecimento do Dogma Trinitário pelo Concílio de Nicéia (325), no Oriente ocorreram várias divergências referentes a este dogma por não haver um consenso teológico a respeito da natureza de Cristo. Logo, além do arianismo, a ortodoxia do oriente ainda enfrentaria problemas referentes a outras três concepções de fé: o nestorianismo, o monofisismo e a iconoclastia.
O Nestorianismo foi desenvolvido por Nestório, patriarca de Constantinopla. Ele afirmava que Maria não poderia ser mãe de Deus, mas apenas mãe de um homem, pois as naturezas de Cristo eram duas, uma divina e outra humana, além de serem separadas. Assim, ele afirmava que a virgindade de Maria não tinha nenhum fundamento. Além disso, o patriarca colocava a natureza divina em segundo lugar, pois humanizava a natureza de Cristo através da doutrina da encarnação. A afirmação de Nestório causou grande polêmica e levou à convocação do Concílio de Éfeso (431) para tratar das questões religiosas levantadas pelo patriarca.
Houve ainda outra afirmação sobre a natureza de Cristo, mas em oposição ao Nestorianismo. Chamava-se Monofisismo e pregava a união completa das naturezas de Cristo, vendo como se tivesse apenas uma natureza, a divina. Assim como o Nestorianismo, também era um dogma de oposição à santíssima trindade, uma vez que não aceitavam a natureza do filho. As agitações causadas pelo monofisismo levaram ao Concílio de Calcedônia (451), onde foi estabelecida a diferenciação das naturezas de Cristo que se encontravam juntas em um ser divino. O Egito, Síria, Etiópia, Pérsia, Armênia e Índia não quiseram negar o monofisismo e deram origem à seita Copta. Segundo Hilário Franco Jr, vale ressaltar a tentativa de Zenão com o Édito de Henoticon em tentar juntar fundamentos de ambas as heresias, o que descontentará Egito e Síria que não quiseram abandonar o monofisismo. Descontentes com a decisão aceitarão o domínio árabe sem nenhuma resistência.
No fim do século VIII, há a manifestação do movimento iconoclasta promovido pelo monarca Leão III. Muito criticado pelo Califa Omar – embora estivessem sofrendo assédio islâmico, o imperador mantinha relações diplomáticas com o Califa – e tentando fazer frente à expansão do Islamismo, o imperador consultará os textos bíblicos para fundamentar sua decisão de acabar com a iconofilia, que era defendida por eclesiásticos como João Damasceno.
Sendo assim, o Imperador convoca um concílio em 730 para condenar o uso das imagens. Nascia o movimento de iconoclastia (a destruição de ídolos). Isso agravará muito as tensões entre a Igreja de Roma e de Constantinopla. Vale ressaltar que há também por parte do imperador a intenção de diminuir os poder dos mosteiros, que eram fabricantes e possuíam ídolos e relíquias; estavam enriquecendo com isto, além da atração monástica estar exercendo forte domínio sobre vários jovens, fazendo com que muitos deixassem de seguir carreira como soldados, marinheiros, camponeses e pagantes de impostos em geral.
Quanto à questão da iconoclastia aconteceram vários avanços e retrocessos. O povo protestará fortemente contra a decisão e houve monarcas que reintroduziram o culto às imagens, como por exemplo, a Imperatriz Irene. Como era difícil combater o partido iconódulo, em 843 o culto às imagens será restabelecido. Isso servirá de fortalecimento à Igreja. Além disso, vale ressaltar que a discordância de Roma da Iconoclastia a levará pedir ajuda aos Francos, que na época tinham como rei Pepino, O Breve, contra os Lombardos. Isso acarretou a perda de muitos territórios, que antes eram de posse dos bizantinos.
Isso foi considerável para agravar o afastamento entre oriente e ocidente. Mas as divergências não param por aí. Uma nova surge. É a questão do filioque. Os ocidentais haviam acrescentado a expressão “e do filho”. Carlos Magno insistirá em sua utilização e acusará os bizantinos de terem suprimido do filioque. A rivalidade aumentará no contexto de guerra pela cristianização da Bulgária, quando o papado acusará os bizantinos de terem nomeado um leigo, Fócio, como patriarca. A partir daí, temos o Cisma de Fócio, que romperá temporariamente com as igrejas. Em 1054, a situação de divergência se torna insustentável e as igrejas (ocidental e oriental) se excomungam, ocorrendo o Cisma do Oriente, rachando a cristandade.




Referências Bibliográficas:

GUERRAS, Maria Sonsoles. Textos Didáticos IFCS: Romanismo, Germanismo e Cristianismo no século V-VI – Programas de Estudos Medievais. IFCS-Publicações: Rio de Janeiro, 1992.
FRANCO JR, Hilário. A Idade Média Nascimento do Ocidente. Edição 2ª. Brasiliense: São Paulo, 2006
FRANCO JR, Hilário e RUY O, Andrade. O Império Bizantino. Brasiliense: São Paulo, 1986
MATOS, Alderi de Souza. A Igreja e Estado: Uma Visão Panorâmica. In:http://www.mackenzie.br/7113.html, consultado em 03/12/2011, às 22:05
RUNCIMAN, Steven. A Teocracia Bizantina. Zahar Editores: Rio de Janeiro, 1978.
SANCOVSKY, Renata Rozental. O Império Bizantino: A Teocracia e os fundamentos religiosos do poder imperial. CEDERJ (material didático à distância), 2010.


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